Produção de Curtas de Ficção como Prática Pedagógica

Resumo

            Esse artigo tem como proposta trazer reflexões a respeito do uso da produção de curtas de ficção, com alunos do Ensino Fundamental II, como prática pedagógica que vai além do aprendizado técnico, estético e do desenvolvimento da criatividade, adentrando a possibilidade de reflexão, por parte do aluno, sobre suas relações com a realidade que chega a ele. Tais reflexões tem como virtualidade principal a capacidade de desconstrução e construção dessas relações.

Introdução

            É comum pensarmos na produção de vídeos de ficção com alunos, como uma prática de desenvolvimento da criatividade das crianças e adolescentes. Sabemos, contanto, que o objetivo de tal prática vai além, tal como as virtualidades do cinema, “a possibilidade que ele dá de recriar o mundo, reinventar a realidade, observar como poderia ser de outra forma” (NORTON 2013; p. 12). O cinema estimula os alunos a refletir sobre a realidade que os alcança e sua realidade interior, cuja relação entre elas dá-se, em primeira instância através das imagens, “superfície significativa na qual as ideias se inter-relacionam magicamente” (FLUSSER 2011; p. 12), posteriormente através da imaginação, “capacidade de compor e decifrar imagens” (FLUSSER 2011; p.12), e da conceituação, “capacidade de compor e decifrar textos” (FLUSSER 2011; p. 11).

            Ao pensar em histórias a serem contadas nos filmes, o aluno encara suas relações com a realidade, entretanto, esse enfrentamento a essas relações não é simples nem mesmo natural, mas deve ser estimulado pelos professores e, se assim não for feito, o aluno apenas representa sua interpretação costumeira da realidade, reproduz apenas “o mundo, sem refletir sobre esse ato, (…) desperdiçando a maior qualidade de toda arte, essa possibilidade de transfiguração” (NORTON 2013; p. 12). Tal transfiguração, essa transformação nas relações do aluno e a realidade que o alcança, ocorre principalmente quando os alunos superam seus limites de reflexão, o que necessita das bases de conhecimentos adquiridos em aulas diversas – de variadas áreas de conhecimento – e de lidar com as dificuldades de pensar em construções estruturadas das obras audiovisuais, quando se depara com a necessidade de pensar nos detalhes de como contar sua história: qual a iluminação, paleta de cores, enquadramentos, e assim por diante, mais adequados para comunicar melhor o que há de conotativo? Deparando-se com essas dificuldades o aluno se vê obrigado a pensar sobre o que está tentando contar, entrando em contato de forma mais sistemática com a maneira que ele interpreta suas relações, podendo, assim, reformulá-la. Dessa forma, o trabalho com o audiovisual “não visa modificar o mundo lá fora, (…) mas os nossos conceitos em relação ao mundo” (FLUSSER 2011; p. 27).

            É importante, entretanto, pensarmos bem a respeito de como as mudanças de relações, as transfigurações, não ocorrem de maneira meramente natural. Não é o mero fazer filme que fará com que o aluno reflita sobre novas possibilidades de interpretações da realidade, e o mesmo ocorre em qualquer prática e vivência artística. O mero fazer, o mero ver, assistir, nada mais faz do que reforçar valores e parâmetros pré-existentes. Até mesmo a maioria das artes às quais os alunos são expostos, também não detêm esse poder de naturalmente transformar as pessoas e o mundo, afinal, se o discurso presente na obra é um discurso com pressupostos aos quais já possuem, e valores que já são reforçados desde sua tenra infância, que transformação interpretativa e relacional isso de fato proporciona? Poderíamos argumentar que há filmes que trazem valores e interpretações da realidade que conflitam com aqueles que a sociedade na qual estamos inseridos possui, e isso faz com que os alunos tenham que pensar a respeito de si mesmo. Esse conflito realmente nos leva a questionar muita coisa, mas são capazes de mudar os pressupostos que embasam tais valores e interpretações? Esses valores e interpretações estão embasados em pressupostos diferentes daqueles que estão sendo questionados? Que desconstrução isso traria de fato? Claro que poderíamos também argumentar que ele desenvolveria um conhecimento estético que não possuía anteriormente, o possibilitando apreciar as obras de arte de maneira diferente. Isso é um fato, entretanto, volto a questionar, de que adianta tal conhecimento sem que haja novos parâmetros, novos pressupostos a serem comparados e investigados pelo próprio aluno? Não se tornaria um ferramental a mais para que ele ou ela apenas reforcem sua visão de mundo e valores já fixados por um constante estímulo social?

            Sendo então o trabalho com audiovisual possuidor de uma virtualidade tão poderosa, devemos refletir como podemos mediar o processo de reflexão do aluno sobre suas relações com a realidade que chega a ele através da produção audiovisual. No caso desse texto, proponho em trazer reflexões sobre como a produção de curtas de ficção pode ser usada para tal propósito.

A Linguagem Audiovisual de Ficção e Sua produção

            O audiovisual, para muitos alunos, é uma fonte de entretenimento, seja dentro da indústria cinematográfica ou dos vlogs e gameplays da internet. Quando pensamos nos filmes de ficção, a questão do entretenimento parece ficar ainda mais evidente, já que, aparentemente, não há uma realidade sendo representada. Entretanto, “temos acesso ao real apenas através da mediação dos discursos; todo discurso elabora ficções aproximativas à realidade, portanto, todo discurso funda-se pela ficção; logo, todo discurso é ficcional” (SCHÄFFAUER 2011; p. 226)[1], e adotando tal perspectiva, passamos a reconhecer o cinema de ficção como uma forma de discurso que pode mediar nosso acesso ao real.

            A relação com audiovisual de ficção, sendo visto como um discurso mediador, ainda pode ser investigado sob duas perspectivas: como espectador e como produtor. Dentro da prática pedagógica, podemos trabalhar ambas as perspectivas de maneira a proporcionar aos alunos momentos de desconstrução e reconstrução de suas relações com a realidade. A primeira é trabalhada com a apreciação e análise de filmes, que é importante ser tratada em outro momento, pois alongaria demais esse texto e sairia do recorte escolhido, a segunda é trabalhada com o fazer.

            Ao trabalhar a produção do audiovisual de ficção com os alunos, é importante pensarmos nisso como um trabalho de linguagem, já que a proposta aqui é o trabalho com os discursos que mediam nosso acesso à realidade, e não como um trabalho limitado à produção estética ou criativa. Sendo assim, os alunos devem adentrar essa concepção, serem apresentados ao audiovisual como linguagem, vislumbrando as virtualidades de comunicação de discursos presentes nesse ferramental.

A linguagem audiovisual é composta por elementos que se inter-relacionam estabelecendo um conjunto de relações com o espectador que entra em contato com a obra, tal como ocorre com qualquer outra linguagem. Esses elementos – enquadramentos, paletas de cores, iluminação, figurino, cenografia, ritmo, trilha e efeito sonoros, etc – possuem virtualidades que quando se tornam efeitos nas inter-relações com o espectador, geram experiências estéticas, cognitivas, se comunicar de forma denotativa e conotativa, e assim por diante. Com o conhecimento desses elementos, os alunos passam a pensar no audiovisual de maneira sistemática, a fim de construir o vídeo de maneira mais eficiente para aquilo que quer comunicar.

Quando nos deparamos com a linguagem do audiovisual dessa maneira, ao produzir um conteúdo, nos vemos obrigados a refletir sobre nosso discurso e como trabalhar os elementos de forma mais condizente a ele, o que nos leva ao contato com nossas interpretações da realidade. Se pararmos nesse contato, produzindo uma obra que simplesmente expõe essas interpretações em nossos discursos, não haverá um movimento de análise, reflexão, desconstrução e reconstrução das nossas relações atuais, muito pelo contrário, normalmente há um reforço delas. Esse processo é semelhante ao processo que ocorre com os alunos e, é nesse momento – no momento do contato com suas interpretações sobre a realidade –, que o professor deve agir de maneira a mediar possíveis direcionamentos de análises dos alunos.

Há várias formas, que não se anulam, de fazer essa mediação, desde fazendo perguntas sobre as escolhas que os alunos façam: Por que vocês escolheram essas cores? Que enquadramento vocês vão usar nessa cena? Por que vocês o escolheram? E assim por diante. Outra forma possível, por exemplo, é deixa-los fazerem o filme e, depois de finalizado – inclusive editado –, exibir a eles, para que tentem interpretar o próprio filme, tentando entender o discurso presente no vídeo e oque eles intencionavam, e assim por diante. Ainda há outras possibilidades, mas o mais importante de todas elas é que os alunos façam seus vídeos. Eles devem fazer desde o roteiro, até a filmagem e, se possível, a edição. Isso por um motivo principal: o aluno estará tentando entender seu próprio discurso, quanto mais o professor interfira no processo, menos haverá do discurso dos alunos e mais do professor.

            Essas explicações, entretanto, não justificam o uso da produção de curtas de ficção. A questão da produção de curtas, tem um lado prático, que é o tempo de pré-produção, produção e pós, mas também tem um lado mais abstrato relacionado a isso, que a quantidade de vídeos que os alunos produzirão até o final do ano e o número de vezes, proporcional a isso, que eles terão a oportunidade de encararem suas relações com a realidade. Agora, a razão de escolher o gênero de ficção é um pouco mais complexo.

            Filmes de ficção, inicialmente, possuem o apelo, como dito anteriormente, ao entretenimento, portanto há um elemento lúdico em sua produção, inclusive na atuação dos alunos como personagens. Entretanto, se a proposta é o uso da produção de curtas de ficção para possibilitar transformações nos alunos através de um senso crítico de suas relações na produção de seus vídeos, por que não trabalhamos com a produção de documentários? No trabalho com produção de documentários haverão outros questionamentos e direcionamentos, mas não deixa de ser possível. Entretanto, o cinema de ficção não tem a pretensão de ser real, não faz pose de pretensa verdade, tal como o documentário o faz. É fácil acreditar que documentários são registros e representações da realidade, mas ignoramos – ato que se tornou consciente no final do século XX e no início do XXI – que eles são feitos de recortes, de pontos de vista, tentam defender um discurso, uma ideologia, argumentações, etc. Os filmes de ficção também tentarão convencer seus apreciadores de algumas “verdades”, mas estarão fantasiados de mera fantasia, ou, quando baseados em fatos reais, não pretendem representar tais fatos, mas defender um discurso em uma roupagem despretensiosa de entretenimento. Ao tentar se comunicar de forma denotativa, os alunos tem que pensar bem mais em quais são os discursos que querem defender e como o farão através de uma história fictícia.

            Quando tentamos entender a realidade que nos alcança, o fazemos através de modelos que se estruturam através da língua. Esses modelos são ficções aproximativas da realidade, como visto anteriormente, desse modo, tal como afirmou o filósofo Vilém Flusser: “realidade é ficção, e ficção é realidade” (SCHÄFFAUER 2011; p. 227), ou seja, são “modelos que formulam uma hipótese sobre a relação entre sujeito e objeto”. Se fôssemos adentrar a questão dos sistemas metafísicos, poderíamos questionar, principalmente hoje, no século XXI, se há tal relação entre sujeito e objeto, ou se há uma inter-relação entre o que convencionamos chamar de sujeito e de objeto, mas não é o caso.

            O trabalho com a produção de curtas de ficção, portanto, pode ser um poderoso ferramental para estimular os alunos a refletirem sobre a realidade à qual estão em relação e a forma que essa relação se faz, podendo, assim, desconstruírem e construírem novas relações que os levem a, constantemente, investigarem a realidade e superarem a alienação que é viver sem entender os direcionamentos que nossa cultura nos trás, colhendo frutos muitas vezes amargos, pois agimos dentro de um programa. O programa atual visa a “manipulação objetivante do homem” (FLUSSER 2011; p. 26), sendo assim, a superação da alienação se inicia o entendimento dos processos que objetificam o ser humano e que faz parte de nossos discursos diários, das bases de nossos pensamentos, passando posteriormente a desconstrução desse “programa” e a construção de novos parâmetros que nos levam a não mais retornar a esses parâmetros antigos. Entretanto, quais os limites dessa desconstrução?

BIBLIOGRAFIA

SCHÄFFAUER, Markus; BERNARDO, Gustavo (Organizador). A Filosofia da Ficção de Vilém Flusser. Além da Ficção. Annablume, São Paulo, SP, 2011.

FLUSSER, Vilém. Pós-História: Vinte Instantâneos e um Modo de Usar. Annablume, São Paulo, SP, 2011.

______________. Filosofia da Caixa Preta: Ensaios Para uma Futura Filosofia da Fotografia. Annablume, São Paulo, SP, 2011.

NORTON, Maíra. Cinema Oficina: Técnica e Criatividade no Ensino do Audiovisual. UFF, Niterói, RJ, 2013.

[1] Citando Gustavo Bernardo em Livro da Metaficção.

PUNHO DE FERRO E O BUDISMO CHINFRIM

Começo esse texto já afirmando: gosto muito das séries da Netflix do universo Marvel. Adorei a primeira temporada do Demolidor, achei a primeira metade da segunda temporada muito foda, mesmo que tenha tropeçado na segunda metade, ainda assim não achei de toda ruim. Jessica Jones foi fantástica também e não me envergonho de dizer que gostei de Luke Cage do começo ao fim; mesmo que tenha achado o Diamondback, um antagonista mixuruca perto do Cottonmouth e de Mariah Dillard. Com Punho de Ferro não foi diferente: gostei da trama da série, alguns personagens como Ward, Madame Gao, acabam se destacando, mas ainda assim achei legal o Danny Rand perdidão e “inocente” que conduz a série.

Essa introdução é só para dizer que não pretendo meter o pau na série, isso outros bloggers e vloggers já estão fazendo, prefiro focar em outros tópicos. Como meu conhecimento de kung fu é bastante limitado, manterei meu comentário sobre esse ponto nesse mesmo limite: as coreografias são fracas. As cenas de luta do Demolidor deixam o “lendário” Punho de Ferro no chinelo, portanto deixou a desejar. Desse modo, opto por focar em como o budismo, o qual o meu conhecimento é menos limitado, foi representado na série.

Desde o início o budismo é apresentado apenas em seu aspecto sobrenatural e religioso, ou seja, mitológico, algo completamente natural dentro de um cenário de ficção e fantasia que é o caso do Punho de Ferro, entretanto, dá-se a ideia de que o Buddha Dharma – o sistema de ensinamentos estruturado por Buddha Shakyamuni – é baseado em citações (Danny Rand cita “ensinamentos” como se fosse aqueles populares livros de “meditações diárias”, “horas de sabedoria”, e assim por diante) e em reprimir emoções, como a própria Claire Temple observa nos últimos episódios. Em outros momentos, o budismo de Punho de Ferro é retratado como um escapismo da realidade, a ponto do personagem ter atitudes sociais extremamente estranhas, como ficar em “postura de meditação”¹ na frente da casa de Joy – sua amiga de infância – com flores, frutas e incenso, dizendo que aquilo é uma “tradição budista” para que eles se lembrarem de sua “ligação”. É até impressionante a personagem Joy ter relevado aquela bizarrice, mas ok.

Esse budismo chinfrim apresentado no Punho de Ferro soa estranho se levarmos em conta que: 1 – além dos Sutras, há centenas – senão milhares – de tratados budistas escritos e comentados por vários pensadores durante a história do budismo, o que não dá para ser resumido em citações jogadas ao vento, como o personagem faz²; 2 – que todos os sutras e tratados relacionados a eles, focam na compreensão e desenvolvimento de Dharmas (objetos de investigação) que objetivam a cessação do sofrimento e suas causas, através da desconstrução de interpretações aflitivas das relações que fazemos parte e interpretação das relações que sirvam de causas de felicidade, o que além de não ter nada a ver com repressão de emoções, leva o próximo ponto; 3 – a investigação da realidade possui uma importância tremenda para o desenvolvimento do budismo, principalmente do budismo acadêmico que advém desde as universidades de Nalendra, Odantapuri, e outras, sendo atualmente estudado seriamente em universidades do ocidente como Oxford.

Durante esse longo parágrafo alguns poderiam estar se preparando para jogar uma falácia do escocês na minha cara, esperando eu finalizar com um: “Isso não é budismo de verdade”. Mas bem, esse é, também, um budismo de verdade, tomando verdade não como um modelo, mas como algo que temos que lidar em nossas relações. No nosso “mundo ocidental” popular, esse budismo chinfrim, talvez seja o budismo mais verdadeiro, pois é com o qual mais nos relacionamos. Entretanto, isso não o torna menos destoante, no que diz respeito ao objetivo expresso nos sutras e os pressupostos que o fundamenta: a cessação do sofrimento e suas causas, através da compreensão da realidade da interdependência. Tal objetivo não é alcançado com citações, repressão das emoções e escapismo. Além disso, a própria ideia do Punho de Ferro, como um ser substancialmente existente – “Eu sou o Punho de Ferro! Eu devo proteger kun’lun!” – não condiz com o pressuposto de que o “eu” não tem existência inerente, existindo como efeito de relações³.

Como disse, não desgostei da série, acho até que ele é um bom retrato do efeito alienante do budismo comercial com o qual temos contato, onde aqueles que o “estudam” e escrevem livros, estão mais preocupados com aquilo que é vendível e que pode ser bastante prejudicial, do que com a estrutura sistematizada que possui maior probabilidade de trazer benefícios para as relações de quem se propõe a praticá-lo. Ainda espero ver um personagem budista que age a partir de pressupostos budistas inter-relacionais e não a partir de pressupostos transcendentais – que conhecemos muito bem – disfarçados com roupagens exóticas.

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NOTAS:

¹ Meditação, na tradição budista indiana antiga e em outras tantas, é algo que deve ser levado a sério e que não dá para ser aprendido em um curso de fim de semana. Não é uma forma de relaxamento, nem tão pouco uma mágica para nos livrarmos de nossos problemas, podendo até mesmo reforçar muitas de nossas interpretações aflitivas das relações, o que pode ser extremamente prejudicial, por isso a importância de um estudo sistemático e do acompanhamento de professores qualificados (que tenham uma tradição séria de estudo, além de ter treinado por anos, conhecendo assim os obstáculos e como superá-los). Portanto, sejam criteriosos na procura de uma escola budista.

² Há muitos desses sutras e tratados traduzidos para o inglês, russo, alemão, mas poucos em português.

³ Um bom livro para tentarmos entender melhor essa perspectiva, é o Como Saber Quem Você É, do XIV Dalai Lama.

Como Encaramos o Cinema?

Creio que quando algo nos incomoda é importante refletir a respeito, para podermos entender o que vem a ser esse incomodo, se ele faz sentido, ou se, na realidade, é resultante de algum preconceito, alguma interpretação distorcida ou algo do gênero. Refletir sobre incômodos, não necessita ser uma prática solitária, ainda mais com a rede de comunicações que temos hoje em dia, o que é bem interessante, pois nos colocamos diante de diversos contrapontos que talvez não nos colocaríamos sozinhos; o mesmo pode ocorrer quando lemos livros, assistimos filmes, peças teatrais, espetáculos de danças, entre outras linguagens que podem ou não nos “tirar do mesmo lugar”. Essas contraposições são necessárias para repensarmos nossos posicionamentos, mas não são receitas universais: uma linguagem que me impacta, não necessariamente impacta os outros. Entretanto isso também não serve como desculpas para não nos esforçarmos para tentar entender o outro independente da linguagem escolhida.

Toda essa introdução na verdade é apenas uma justificativa para eu falar de um incômodo, que é a ideia de que filmes, séries, novelas, e até mesmo outras formas de artes, como o teatro, a dança, pintura, etc, são apenas para serem sentidas, experienciadas. Isso me incomoda pois trabalha com o pressuposto de que existe uma cisão clara entre “razão e emoção”, entre sentir e pensar sobre algo. Essa perspectiva nos é natural por conta de todo nosso desenvolvimento cultural, cognitivo e filosófico. Por aprendermos isso desde pequenos acabamos por tomar tais pressupostos dicotômicos como verdades e nem mesmo mais paramos para refletir de fato sobre eles, desse modo nossa cultura estruturou a ideia de que um filme é bom se “conseguiu me convencer”, se conseguiu me fazer sentir algo que eu “nunca senti”. Para culturas com tão poucas definições emocionais é até estranho conseguirmos claramente distinguir quando sentimos ou não algo diferente.

Para não perder o foco, vou me manter sobre o incomodo em si e não em suas ramificações. Afinal, ele surge não pelo fato de ter pessoas que adotam essa postura, já que essa diferença é interessante e muito importante, quando se estabelecem diálogos – tal como qualquer posicionamento – caso o contrário torna-se apenas razão para isolamentos cada vez maiores e intolerâncias. Portanto o que me incomoda é que a linguagem cinematográfica – focarei nela – é uma linguagem complexa, que se utiliza de característica discursiva e não discursiva, algo que o filosofo Júlio Cabrera definiu como sendo uma característica “logo-pática” já que não separa a logica da emoção. O discurso cinematográfico, portanto, se utiliza do lógico e do emotivo simultaneamente, não sendo possível separa-los sem que haja uma limitação em nossa analise.

Desse modo o audiovisual, em especial o cinema, as novelas e as séries, transmitem seus discursos de maneira emotiva e com uma certa “atmosfera de verdade universal” (CABRERA 1999). O elemento logo-pático e essa “atmosfera de verdade universal”, possibilita que o discurso seja absorvido de maneira irrefletida, pois é logo-paticamente convincente. Isso de modo algum é uma defesa da influência determinante do cinema no comportamento das pessoas, mas sim a defesa de que essa linguagem, tal como todas as outras, são ferramentas para a reafirmação de valores, crenças, modelos, e por ai vai.

Por conta de toda essa complexidade, é que me incomoda o mero sentir como objetivo de ir assistir um filme. Gosto de buscar entender o filme não apenas em seu discurso explícito, – a história que está sendo contada, se faz sentido ou não dentro dos meus modelos e do meu conjunto de valores -, mas sim qual o discurso implícito, o discurso base para que o discurso explícito, a historia, seja contada. Que valores estão sendo defendidos ou questionados? De que maneira isso está sendo feito? Quais os pressupostos que sustentam a história? A narrativa está defendendo uma possibilidade de mudança natural? Ou um destino? Ou uma possibilidade de mudança através do esforço? Há um pressuposto metafísico ou uma inter-relacionalidade sendo trabalhada? Que elementos estéticos, estruturais, organizacionais, e qualquer outro elemento – tanto da produção quanto da pré e pós-produção – nos servem como indicadores desses pressupostos? E assim por diante.

Esse tipo de analise faz com que eu me interesse mais pelos filmes, dando a eles outros significados nos contextos que estou inserido, já que me levam a refletir ainda mais sobre o fluxo de relações interpessoais e intrapessoal às quais chamo de vida. Por conta disso, sinto um pouco de necessidade de ler ou assistir – no caso dos vlogs – análises cinematográficas que tentem adentrar os discursos implicitos, o que na maioria dos casos não ocorre, pois tendemos a nos manter em análises a respeito do discurso explícito dos filmes.

Tentando sair um pouco das justificativas dos meus interesses e finalizando com uma observação geral, creio que esse tipo de análise – mesmo que mais trabalhosa e cheia de riscos – encara o cinema pela complexidade que ele possui. De forma alguma estou dizendo que esse tipo de análise mais sistemática não exista. Existe sim, é possível ler a respeito nos trabalhos de Eisestein, Jacques Aumont, entre outros, mas penso que isso poderia, muito bem, estar mais presente para um público mais amplo, através de vlogs e blogs, para que pudéssemos pensar nossa forma de apreciar o cinema.

O aspecto de entretenimento está presente, é claro, mas não se limitar a isso, talvez, nos leve a pensar em como tornar o audiovisual ainda mais valioso e amplo como a linguagem que é.