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31º Post

Este é o último post. E mesmo como último post, ainda assim, manterei minha intensão inicial de que seja um arquivo de sobrevivência.

Fui até o “criadouro” e descobri que não “criavam” seres humanos apenas com o intuito de se alimentar deles, e sim para que os humanos continuassem existindo. Isso me pareceu estranho de início, mas muita coisa foi esclarecida.

Como disse anteriormente, os immortuos dependem dos vivos para existirem, afinal, eles só se alimentam de carne viva e, além disso, mortos não procriam. Entretanto, as perguntas que devem vir à mente de quem está lendo este relato é: “Por que eles iriam querer procriar? Se manter existindo? Eles não estão mortos? Há, por acaso, alguma necessidade biológica envolvida? Eles não destroem tudo em seu caminho?”.

Bem, os immortuos não possuem nenhuma necessidade biológica para fazerem qualquer coisa, mas possuem “necessidades” psicológicas muito intensas; tal como um velho de oitenta anos tarado.

Em suas ações, não há mero desejo de destruição, não há mera vilania, simplesmente não há. Há angústia, dor, desespero. Morrer é um processo lento e doloroso, ainda mais do que existir. Alimentar faz as ânsias sumirem temporariamente, as angústias somem com aquele breve e efêmero prazer.

Não é esse o problema com aqueles que sofrem de bulimia? A incapacidade de compreender e lidar com seus medos e ansiedades? Não é essa a forma de fuga de muitos humanos, que se alimentam para saciar suas ânsias e angústias? Que matam para comer a fim de tentar preencher o vácuo existencial em seus corações, através de sensações de poder e prazeres que não extinguem o real problema?

Há algo em comum entre os humanos e os immortuos: MEDO! Ambos têm medo da realidade. Nossa real solidão. Nossa real situação de sofrimento constante, ocultada por fugidios prazeres. Medo da dor: física e emocional. Medo de deixar as memórias, medo que aquilo que nos dá prazer suma e que o futuro seja um buraco negro que nos suga sem compaixão.

O medo faz parte daqueles que estão morrendo. É difícil deixar de “existir”; aceitar a possibilidade de nossas memórias e experiências simplesmente se extinguirem. Aceitar o que vem depois, se é que vem algo depois. Aceitar o processo doloroso da morte, temendo que o que venha após, seja mais dor e sofrimento. Nossa maldita herança da crença no “inferno”.

Marcos me mostrou algo. Os immortuos não se matam, não se atacam, não por que se ignoram, mas por que sabem. Instintivamente sabem o que se passa com seus iguais. Nós sentimos uns aos outros. Sabemos que o tiro na cabeça apenas nos coloca em uma espécie de coma, a morte só vem com o apodrecimento. O doloroso e lento apodrecimento.

Da mesma forma, esse vínculo que temos com nossos iguais, nos dá a impressão, talvez uma falsa impressão, de continuidade de nossa existência. Diminui nosso medo de realmente morrermos. Dá uma sensação de continuidade, de segurança. Os humanos para nós, são como arquétipos dessa segurança e continuidade, porém, também são para nós um excelnte alimento.

Até o momento, não encontramos outra forma de fugir da dor e do medo a não ser alimentando-se. Poderíamos nos alimentar apenas de animais. Poderíamos extinguir os humanos e existir placidamente sem temer uma espécie que se revolte contra nós.

Mas os animais são imprevisíveis. Os humanos não.

Os humanos são como nós. E temos mais facilidade de compreender aquilo que se assemelha a nós. Sabemos o que esperar de vocês. Sabemos que vocês – tal como nós – querem apenas fugir da dor, do medo, do sofrimento. Sabemos que para evitar essas coisas, vocês agem de forma estúpida. Demente.

Há poucos de vocês com sabedoria o suficiente para agirem de outra forma. Tal como vocês, a poucos de nós também.

Precisamos realmente que vocês vivam. Portanto não se preocupem. Não deixaremos vocês se extinguirem.

Somos muito semelhantes. E essa semelhança nos faz bem.

            Sapiens Immortuos Paulo Vieira Sales.

30º Post

Não sei por onde começar. Estou atônito, confuso e com muito medo. Toda a perspectiva apontava para a melhoria da situação humana no mundo. As coisas estavam voltando a progredir. Essas criaturas podres estavam sumindo.

Simplesmente sumindo.

Já imaginava mesmo que algo estranho estava acontecendo. Tinha esperanças de que eles estivessem morrendo em áreas selvagens, procurando seres vivos dos quais se alimentarem, ou algo assim.

Sinceramente, queria que todos esses últimos ocorridos fossem algum tipo de pesadelo. Que eu estivesse dormindo e logo acordaria.

Depois da tentativa de invasão de immortuos “novos” nessa tarde, os moradores de nossa Necropoli, tanto a civil quanto a militar, ficaram bastante ansiosos com os presságios que isso nos trazia. Era o sussurro rastejante de uma noite sombria e aterrorizante e, pior, de um futuro ainda mais sombrio e amedrontador.

Os grupos de immortuos não retornaram, mas tivemos outra visita: uma sobrevivente. Ela chegou desnutrida com seus cabelos desgrenhados, com a pele imunda – cheia de sangue seco, terra, fuligem, e seja lá mais o que pode deixar a pele extremamente encardida –, roupas rasgadas, dentes podres e feridas pelo corpo, talvez resultado de alguma micose ou outra doença de pele. Seu olhar fundo é desesperador, de quem passou por horrores indescritíveis, algo semelhante ao olhar de sobreviventes de Auschwitz ou de testemunhas de algum crime hediondo. Seus olhos são inquietos, um sintoma grave de stress.

Quando ela apareceu no Portão 2, nossos vigias acionaram o alarme dos comunicadores e não a deixaram entrar, acreditando que essa mulher era mais um deles. Ela não falava nada inteligível, apenas gritava e grunhia em desespero, tentando inutilmente balançar as grades do portão, enquanto olhava aterrorizada para trás, como se estivesse sendo perseguida. “Deixe-me entrar!”, gritou ela com sua voz rouca – segundo os relatos dos vigias, eles acreditam que ela já estava gritando isso antes, mas eles não conseguiram compreendê-la –, mesmo assim, eles não abriram, pois havia uma ordem dos militares de não abrirem os portões para ninguém, mesmo que essa “pessoa” falasse. Eles obedeceram, mesmo sem saber o porquê.

Mas ela não desistiu. Quando os militares chegaram, ela continuou tentando abrir o portão, cansada, arfando, e só parou quando eles apontaram a lança para ela. “Por favor, deixe-me entrar”, ela chorava com a voz falha, e caiu de joelhos em pranto. Os militares arriscaram. Preferiram deixá-la entrar e examiná-la, para ver se não era nenhuma sapien immortuos, pois se não fosse, aquela mulher precisava seriamente de ajuda.

Ela foi trazida até meu consultório, acompanhada de soldados, médicos e o Comandante Rodrigues. Perguntei o que estava havendo e o Comandante respondeu: “É uma sobrevivente. Ela está falando algo sobre um ‘criadouro’, mas não conseguimos entender. Precisamos que você a acalme”. Vendo o estado da mulher, respondi: “Ela não se acalmará tão fácil, nem tão rápido”, e, com um olhar sério o militar ordenou: “As informações dela podem ser de extrema importância para nossa sobrevivência, dr. Faça o que for necessário”.

Eles me deixaram a sós com ela. Ela não parou de tentar falar sobre o “crriaadourro”, mas era muito difícil compreender sua fala. Pedi para que os soldados, que esperavam do lado de fora do consultório, trouxessem comida e água para ela. Da minha parte, optei por dar tranqüilizante àquela mulher. Não queria que ela fosse interrogada, porém ela insistia: “Nã… p… dorrmirr. Q…falarrr…”. A observando de perto, percebia sinais de desidratação. Não sei se ela teve sorte de ter sobrevivido, pois com certeza ficará com seqüelas físicas e mentais.

Os militares trouxeram o que pedi. Ela se alimentou vorazmente e bebeu água, pedi para ela não exagerar, pois passaria mal, mas entrou em um ouvido e saiu pelo outro. Ela vomitou grande parte do que tinha ingerido pouco depois. Após vomitar, ela bebeu água, mas dessa vez sob minha orientação, comeu algumas bolachas e sentou-se.

“Você precisa se acalmar, por favor, tome o tranqüilizante”, disse a ela com um tom calmo de voz. Ela me olhou e falou de vagar, engasgando um pouco: “Eu… preciso falar…”. Respondi a ela: “Esse remédio não irá derrubá-la, apenas deixará você mais tranqüila. Você poderá falar”. Ela negou com a cabeça e disse: “Não… quero… ficar grogue”. Garanti que não ficaria, que lhe daria uma dose apenas para baixar sua ansiedade, ela, mesmo desconfiando um pouco, aceitou e tomou o remédio.

Assim que o engoliu, pediu para que eu chamasse o Comandante. Então pedi para que os soldados o chamassem e, junto a ele, pelo menos um médico para examiná-la direito. Enquanto esperávamos pelo militar, sugeri a ela que tomasse um banho, já que meu consultório era o quarto de uma das residências da Necropoli. Ela aceitou. Pedi para uma das moradoras emprestar-lhe uma roupa e ajudá-la com o que fosse necessário. Antes de sair, perguntei seu nome: “Suzana”, respondeu-me.

Suzana demorou bastante no banho, talvez para tentar tirar o grosso da sujeira, nisso o Comandante chegou. Sabendo que ele não era um homem sensível, conversei brevemente a respeito do interrogatório que faríamos: como fazer as perguntas e até onde ir; já que iríamos interrogar uma pessoa em choque. Ele concordou, mesmo tendo deixado sua impaciência tomar conta da conversa em alguns momentos.

Suzana voltou, ainda encardida, mas aparentemente mais limpa. Pedimos para que ela se sentasse e contasse o que ela queria nos dizer. Colocarei os trechos mais importantes da conversa:

Suzana: Eu sobrevivi… (Pausa, olhando para o espaço a frente como se estivesse em outro lugar. Seus olhos ficaram úmidos). Sobrevivi… (Mais uma breve pausa). Aquele lugar… horrível! O cheiro! O ambiente! A tensão… A morte era certa… Era inevitável… inevitável. (Chora copiosamente).

Eu: Suzana. (Pausa. Ela chora mais um pouco e depois me olha). Quer falar sobre isso outra hora?

Suzana: (Desesperada) NÃO! Vocês não sabem o que é aquilo! Vocês não sabem o perigo que correm! (Levanta-se).

Eu: Por favor, Suzana, acalme-se. (Pausa). Você pode falar. Que lugar é esse?

Suzana: Um criadouro! (Pausa. Suzana senta-se, balançando as pernas ansiosamente). Eles nos capturam e criam como se fossemos animais. (Chora mais um pouco).

Comandante: (Impaciente). Eles quem?

Suzana: Os mortos. Os mortos nos colocam para viver em grandes valas. Nos alimentam como porcos. (Olha chocada para a parede branca, como se deslumbrasse exatamente a cena em sua frente). Eles queriam que nós procriássemos! (Volta a chorar).

Eu: (Atônito). Os mortos faziam isso com vocês? Esses mesmos mortos que a estava perseguindo?

Suzana: Não! (Olha para os meus olhos. Olhar desesperado). Outros! Esses não sabem o que fazem… Eles me perseguiram porque os outros descobriram que nós fugimos.

Comandante: Quem são “nós” e os “outros”?

Suzana: Eu não fugi sozinha… Fizemos uma rebelião… Éramos alguns, mas só eu sobrevivi. (Pausa). Meus amigos foram devorados e se tornaram amigos deles.

Comandante: (Desconfiado). Os que te perseguiam eram seus “ex-amigos”?

Suzana: Não só. Alguns poucos eram. (Pausa). Bem poucos… A maioria não.

Comandante: Eles não estavam apodrecendo…

Suzana: Não! Eles se alimentavam de nós e de animais! O criadouro é pra isso! Para eles terem alimentos!

Comandante: (Ainda mais impaciente). Mas por que um criadouro humano?! Demoramos demais para ter filhos.

Suzana: Não tinha só o nosso! (Pausa). Vi criadouros de coelhos e ratos também.

Comandante: (Pensativo). O que eles faziam com vocês?

Suzana: Só nos alimentavam e queriam que procriássemos! (Pausa. Chorando). Mas não dava! Não lá! Não daquele jeito!

Comandante: (Perdendo a paciência). Se eles se alimentavam de animais, pra que criar humanos? Nós damos mais problemas para eles do que meros animais! Me diga o que eles faziam com vocês? Por que eles queriam que procriassem?

Suzana: NÃO! (Em choque). Não!

Eu: Suzana! Está tudo bem. (Com voz calma e amigável). Você está salva. (Pausa). Por favor, acalme-se. (Pausa maior). Nos fale quem são os “outros”.

Suzana: (Chorando, tentando se acalmar). São os líderes… (Pausa). Eles olhavam diferente. Falavam… (Pausa). bem lentos… Pareciam débeis mentais.

Comandante: (Constatando). Debile Immortuos.

Eu: (Confirmo com a cabeça).

Suzana: (Olhando desconfiada). Eles só pareciam débeis mentais… Eles não eram.

Eu: (Confidente). Acreditamos em você, Suzana.

Suzana: Principalmente o dono. (Pausa). Ele nos ameaçava. Dizia que se não procriássemos, seríamos levados para alimentar seus “irmãos”, ou algo parecido. (Pausa). Ele falava como se estivesse vivo.

Comandante: (Olhando para mim). Você sabe o que é, não?

Eu: Sim, Comandante.

Comandante: (Olhando para ela). Quem é esse dono?

Suzana: Não sei seu nome. Mas era um morto.

Eu: Você o viu? Pode descrevê-lo?

Suzana: Não o vi. Apenas sua sombra, quando eu fugi. (Pausa). Ele nos disse: “Inútil fugir! Não há portas que sejam capazes de impedir a morte de pegá-los”. (Grifo meu).

O interrogatório não foi muito além disso, mas aquela frase está me perturbando. A semelhança é muito grande. O Comandante disse que enviará amanhã um grupo de busca ao local que Suzana nos indicou; pedi para ir junto.

Eu realmente preciso saber. Preciso acabar com minhas dúvidas.

29º Post

A dúvida prossegue, mas soma-se outro evento a ela. Logo após ter terminado de escrever o post anterior, ouvi o comunicador de minha república tocar em alerta. Fui ver o que era e havia uma grande movimentação de militares dentro de nossa Necropoli. Escutei tiros – o que me deixava ainda mais preocupado com a gravidade da situação – e urros furiosos aparentemente fora de nossos muros.

Curioso, segui os militares e vi dezenas de immortuos empurrando o Portão 3, quase o derrubando. De dentro, os militares usavam lanças, enquanto quatro ficavam nas guaritas próximas com fuzis e pistolas. O que mais me impressionava disso tudo era o fato de que aqueles immortuos não estavam podres e lentos. Eles eram “novos” e rápidos, talvez tivessem acabado de passar pelo rigor mortis, não sei dizer, mas ainda estavam “novos”.

Senti meu coração perder o compasso e um frio gelou minha espinha. Os militares tiveram muita dificuldade para parar aqueles seres, e provavelmente não conseguiriam, se algo não os tivesse chamado para longe de nosso portão. Um urro gutural e aterrorizante pareceu soar como uma trombeta e aquelas criaturas deram meia volta e passaram a nos ignorar indo embora tão rápido quanto surgiram.

Nunca tinha visto aquilo. Não sabia o que estava acontecendo, nem quem tinha dado o tal urro, sei apenas que havia algo comandando aquela turba; o que era extremamente perturbador.

Os militares estavam tão pasmos e assustados quanto eu. Eles haviam gastado muitas munições e quase perderam lanceiros. Além disso, tínhamos um novo problema estrutural, o portão estava inutilizável e frágil. Convocamos vários moradores e consertamos rapidamente o portão da melhor forma possível.

A dúvida persiste. Mais forte e mais aterradora.