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Mudanças

– Filho da puta! – Gustavo escuta o comandante Rodrigues gritar, voltando a olhar pelo binóculo, tentando ver quem é o immortuos que está comandando o ataque.

A chegada da “sobrevivente” trouxe muitas perguntas para todos os moradores da Necropoli. Com Gustavo e Marcela não foi diferente.

– O que você está vendo? – pergunta Marcela.

– Não consegui ver nada além de um bando de insanus immortuos. – responde Gustavo, utilizando o termo que aprendeu com Paulo, que está desaparecido a mais de vinte dias com o grupo de busca que saiu atrás da localização do “criadouro humano”.

– E se eles invadirem a Necropoli? – pergunta Marcela preocupada.

– Não irão. Estamos seguros. – responde Gustavo vacilante.

Marcela desconfia da resposta.

– Você soube sobre o que aquela tal de Suzana falou, não soube? O que era aquele grupo de busca com o qual Paulo saiu? – questiona Marcela.

Gustavo acena com a cabeça e volta a observar com o binóculo.

– Ela sofreu muito, Ma. As coisas que ela fala não fazem sentido algum. – responde o mecânico tentando confortá-la.

– Mas olha o que está acontecendo agora. – sua voz é trêmula – Não quero ter que fugir novamente. – ela começa a chorar.

Gustavo coloca o binóculo de lado e se aproxima para confortar sua namorada.

Desde que eles construíram a Necropoli civil, Gustavo e Marcela sabiam que teriam que deixar o passado para trás e reconstruir suas vidas. Gustavo auxiliou bastante no desenvolvimento da Necropoli, além de auxiliar nas pesquisas de novos combustíveis para os automóveis. Enquanto Marcela teve que aprender novos ofícios, já que uma jornalista – em um momento que havia uma grande necessidade de mão obras – não era tão útil. Mesmo assim, Marcela não deixou por desejar, indo atrás de aprender tudo o que podia para ajudar a construir aquela “cidade dentro da cidade”.

Ambos foram morar em uma mesma república, ou mausoléu, como alguns chamam as residências. Uma casa de dois andares que dividem com mais três pessoas. Durante os meses que se passaram, Gustavo e Marcela tornaram-se cada vez mais próximos, até um inevitável relacionamento correr. Tudo parecia estar voltando a uma certa normalidade, eles já deslumbravam no horizonte um renascimento para a raça humana.

– Nós não vamos ter que fugir novamente.

Ela se desvencilha de seu abraço.

– Pare de tentar me confortar! – grita angustiada – Nem você mesmo acredita que estamos tão seguros!

Gustavo fica sem resposta. Um grande e incomodo silêncio entre os dois toma conta do lugar. O mecânico nem mesmo escuta os tiros dos militares contra a turba de mortos vivos.

– Ma…

– Não! Preciso de espaço no momento. – afirma afastando-o com as mãos.

Gustavo opta por respeitar, a fim de evitar uma possível discussão. Ele volta para a janela do quarto e pega o binóculo novamente, para ver que a multidão de immortuos havia partido após terem feito um grande estrago no portão um da Necropoli. Os militares se mantêm a postos, para caso eles voltem, mas aquela visão já lhe permite puxar assutno novamente com Marcela.

– Eles se foram. – diz ele.

– Mas vão voltar. – retruca ela.

– Sim, irão. – responde o mecânico novamente – É assim que o mundo está atualmente. No momento não temos o que fazer, a não ser nos defender.

– Até quando isso? – pergunta Marcela irritada.

– Não sei. Talvez para o resto de nossas vidas. Mas pelo menos estamos em uma situação melhor do que nos meses antes de virmos pra cá. – responde Gustavo, começando a se irritar.

– Talvez seja melhor morrer! – diz desesperada.

– E se tornar um deles? – questiona Gustavo – Não fala besteira.

– Claro que não! Estou dizendo morrer de verdade! Ter a cabeça arrancada e ser cremada. – responde ela.

– Ma, por favor, seja razoável. Nossa situação não é imensamente diferente da que vivíamos antes disso tudo ocorrer. – diz Gustavo com uma voz mais suave – Só que naquela época tínhamos outros problemas. Haviam…

– Juro que não quero conversar sobre isso agora. – Marcela encerra o assunto, saindo do quarto.

Gustavo senta-se na cama e fica pensando se a comparação que ia fazer entre a situação atual e a violência no mundo antes da “epidemia” era coerente. Entretanto, seus pensamentos flutuam de um assunto para outro – expectativas, cenas do passado, planos, esperanças, e assim por diante – impedindo que ele consiga refletir com profundidade sobre o tema.

“Se Evandro estivesse conosco”, pensa Gustavo sendo pego de surpresa pelo seu desejo de segurança. Mesmo com a morte de Carla, o mecânico não tinha rancor do policial. Ele sabia que a atitude dele tinha sido para ajudá-la, mesmo que tenha dado errado.

Duas batidas na porta do quarto tiram Gustavo do transe.

– Entra.

A porta se abre e um homem magro, alto, de cabelo comprido entra com uma caixa.

– Fala, Gustavo. Beleza? – cumprimenta o homem.

– Tudo bem sim, Lucas. – responde Gustavo olhando para a caixa – Aconteceu alguma coisa?

– Não, não! – gesticula Lucas enquanto fala – Só vim te entregar isso. – Lucas entrega a caixa para o mecânico.

– O que é isso?

– Os militares disseram que foi deixado na frente da guarita três hoje durante a troca de turno da tarde. – responde Lucas.

– E os militares não abriram para ver? – Gustavo pergunta suspeitando daquilo.

– Não abriram a caixa, apenas o bilhete.

– Bilhete? – a curiosidade de Gustavo aumenta, fazendo-o procurar o bilhete, que está em um envelope grudado em uma das laterais da caixa – Ok, Lucas. Valeu.

A sós com a caixa, ele abre o bilhete:

“Caro, Gustavo ‘Mecânico’,

Isso é para que você saiba que aquele que nos causou tanto sofrimento não mais caminha nesse mundo.

Atenciosamente,

Evandro”.

Sentindo um calafrio, pois sabe que a forma de agir, e provavelmente pensar, de Evandro não condiz com o de um ser humano normal, Gustavo abre cautelosamente a caixa. Assim que tira a tampa, um cheiro de carniça sobe até as narinas do mecânico, que imaginando o que é, fecha a caixa e sai do quarto com ela.

Ele desce a escada e passa pela sala onde Marcela está assistindo a um filme.

– Onde você vai? – pergunta sua namorada.

– Vou jogar isso no lixo.

– E o que é isso?

– Um dos presentes bizarros de Evandro. – responde o mecânico tentando encerrar logo a conversa.

Marcela se surpreende:

– Evandro está vivo?

– Parece que sim. – responde brevemente Gustavo – Agora me deixe levar isso para o lixo, por favor.

Marcela não responde, apenas faz cara de quem não gostou da resposta e volta a assistir o filme. Gustavo sai da casa e vai até onde os moradores colocam seus lixos que serão levados pelos militares até algum laboratório de combustível, ou até um lixão.

Chegando lá, ele coloca a caixa junto com os outros lixos.

– Evandro, Evandro. – ele suspira pensando alto – Imagino que você tenha feito com boa intenção, mas isso não é um bom presente.

– Ah não? E o que seria um bom presente? – Gustavo se assusta com a voz vinda de trás dele e se vira rapidamente.

– Evandro? – pergunta Gustavo, olhando para aquela feição familiar, porém com algo bem diferente do que se recorda – O que aconteceu com você?

Os olhos de Evandro estão vidrados, com veias aparentemente estouradas, seus músculos estão claramente tensos e um de seus antebraços está mutilado.

– Não interessa. – responde secamente – Não vim pra isso. Quero lhe fazer um convite.

– E qual seria?

– Construirei uma Necropoli e quero que você me ajude. – responde Evandro.

– Venha morar conosco. – convida Gustavo.

Evandro ri.

– Não. É um outro tipo de Necropoli que quero construir. – por algum motivo Gustavo fica preocupado, mas espera para escutar se o policial tem algo a mais para dizer – Nela, não haverá humanos e nem immortuos.

– Como? – Gustavo fica confuso.

– Irei atrás de alguns antigos colegas e te treinaremos. Quando você estiver pronto, será como eu. – responde Evandro.

– Como você? – pergunta o mecânico – E o que é ser como você?

– É ser o início de uma real transformação nesse mundo morto.

Gustavo o encara nos olhos. Ele nem imagina o que o policial está planejando, mas, até um certo ponto, confia nele. Quem sabe essa seja uma boa notícia para ajudar Marcela a acabar com suas preocupações e eles ficarem numa boa.

Entretanto, esse pensamento soa estranho, tendo em vista que quem está planejando algo é um homem que de “numa boa” não tem nada.

– Certo. Aceito te ajudar, mas a Marcela vai junto. – responde Gustavo um pouco vacilante.

– Como quiser. – da de ombros Evandro – Arrumem suas coisas. Partiremos amanhã.

Evandro vai embora assim que termina de falar. Gustavo fica olhando para o lixo por algum tempo, refletindo se sua resposta foi realmente a melhor escolha. Ele lembra de Carla e o que Evandro tentou fazer com ela para ajudá-la a sobreviver.

Gustavo volta para casa, com um caroço incomodo em seu estômago.

Fome de Sentido

Observando a cidadela de sobreviventes humanos no vale abaixo, Ahmed se recorda de quando “morreu” há aproximadamente cinqüenta anos atrás, por causa de uma pneumonia, no período do jejum no mês do Ramadan.

Ele foi um grande fiel do Islam por muito tempo, mas depois de sua “morte”, tudo mudou. Em seu coração, há ainda uma grande convicção de que foi graças às suas práticas espirituais que ele conseguiu passar pela transformação sem se tornar uma besta, como a maioria daqueles que povoaram o mundo recentemente, mas isso não o impediu de tornar-se um monstro.

Por experiência, ele sabe qual é a dificuldade de manter a sanidade durante o processo de “morte” e “ressurreição”, e também nos anos após. O corpo se enfraquece, a visão torna-se turva, a boca e as mucosas secam, para depois o corpo esfriar, o pulmão não mais se movimentar – dando uma sensação de afogamento –, o coração parar e a visão escurecer, criando um vasto terreno para alucinações. Ahmed teve uma visão do inferno durante seu falecimento, viu pessoas se devorando, sentiu na pele o desejo de devorar enquanto uma dor lacerante lhe dava a impressão de que estava sendo empalado e mutilado, porém sem perder a consciência em momento algum.

Ahmed observou tudo aquilo com grande esforço e orou para Alá pedindo misericórdia, pois após quarenta anos de servitude, não entendia o porquê estava sendo empurrado para o inferno. Seu corpo tencionava-se cada vez mais, ele sentia o estômago se revirando, espasmos que geraram estranhamento, já que seu corpo estava morto. Ele tentou respirar algumas vezes, por mero e forte hábito. Sua mente quase enlouqueceu de angústia quando percebia que não conseguia, que o esforço hercúleo não trazia benefício algum.

Ele se levantou com seu corpo já lavado quando seu irmão o estava enrolando com a primeira mortalha. Ahmed viu o terror no rosto de seu familiar, mas não sentiu nenhuma compaixão ou piedade. Sentia sim uma grande dor e vontade de tomar sua vida. Sentia que aquilo que lhe faltava, seu irmão possuía.

Seu irmão tentou fugir, mas a potência do corpo de Ahmed era maior por causa das tensões. Em uma explosão muscular, ele correu até seu irmão, o agarrou pelos ombros e o puxou, derrubando-o no chão.

Depois disso, houve apenas sangue e gritos, principalmente depois que seus outros familiares chegaram. Ahmed não os atacou, sabia que a probabilidade de ser “morto” era grande, então fugiu. Depois desse ocorrido ele foi “viver” na cidade de Lahore, no Paquistão, com sua grande população de islâmicos, entretanto não conseguiria sobreviver muito tempo se não agisse com cautela.

E assim o fez.

Por vinte anos conseguiu agir em Lahore sem chamar muita atenção. Assassinatos brutais deixaram a população temerosa, mas ele sabia como agir de forma que parecessem assassinatos religiosos, semelhantes aos dos antigos seguidores de Hassan. Suas vítimas sempre eram pessoas corruptas da comunidade islâmica ou raros infiéis: hindus, budistas, siques, e assim por diante. Porém, em um dado momento, uma de suas caçadas falhou. Ele chegou a morder sua vítima, mas essa conseguiu fugir e morrer horas depois, quando já havia espalhado boatos sobre a presença de ghul na cidade.

Foi graças a esse ocorrido que Ahmed percebeu que não precisava comer sua vítima até que ele morresse. Ele sentiu a vida dela aplacar seu sofrimento aos poucos, tendo seu efeito máximo quando ela faleceu. Entretanto esse fato também teve outros resultados.

Por máximo que a mente moderna negasse a existência de seres folclóricos ou mitológicos, a comunidade religiosa não o fez. Iniciou-se então uma caçada de alguns fanáticos à tal criatura. As autoridades legais não ficaram atrás, porém eles não caçavam um ghul, mas deixaram de temer que os assassinatos fossem obra de alguma seita xiita e passaram a acreditar que eram atos feitos por um pequeno grupo de assassinos sem fundamento islâmico, pois canibalismo não é bem visto pelo seguidores do Corão. Dessa forma ele preferiu partir para uma cidade menor, Okara, mas dessa vez, por medo de ser descoberto, se limitou por anos a alimentar-se de animais e de andarilhos.

Foram anos tortuosos que em alguns momentos fizeram com que Ahmed tentasse voltar à prática de sua religião, porém, depois da transformação, foi inviável manter suas crenças e práticas religiosas, sua atual natureza é incompatível com a fé, ou pelo menos, é para ele.

Ahmed passou pelo menos mais cinco anos em Okara, depois disso ano após ano peregrinou de uma cidade a outra, sem saber o que fazer de sua existência, além de lutar contra o constante sofrimento que sentia, se esforçando ao máximo para se manter são. A existência tediosa e sem sentido, o tornava, cada vez mais, um assassino cruel e calculista.

Matar, era a única coisa que o saciava. Que aplacava seu sofrimento. Ou, pelo menos, era essa a única percepção que ele conseguia ter de sua situação.

Foi há alguns meses atrás que o mundo se transformou no grande inferno que ele imaginou que um dia habitaria pela eternidade. Em pouco tempo, seres iguais a ele surgiam em todo o planeta, porém, poucos conseguiam sobreviver à transformação sem seqüelas mentais; e ele, cada vez mais, sentia o peso de seu ódio e de seu sofrimento em sua mente.

Com essa mudança, Ahmed desceu para a Índia, preferiu mudar de território, imaginando que isso, de alguma forma, traria respostas ou novas maneiras de lidar com sua condição. Lá ele entendeu como seus semelhantes menos capacitados podiam ser liderados por ele, e ficou surpreso com a empatia que voltou a sentir, porém, dessa vez, era em relação aos outros ghuls.

Esse retorno a um pequeno vislumbre de “sentimento humano”, lhe fez dar um novo sentido para sua “vida”. Assim, ele criou um exército de desmortos, que tinham como objetivo, extinguir quaisquer riscos as suas existências.

Ahmed retoma sua atenção à cidadela, repassando mentalmente o planejamento da invasão, para que eles tenham maiores chances de dizimarem aquelas ameaças. Ele urra fazendo com que seus soldados desmortos partam em direção ao inimigo. Cada tipo de urro fazendo-os agir de modos diferentes, conseguindo assim guiá-los estrategicamente na empreitada.

O velho morto-vivo sorri, percebendo que aquela sensação de poder e importância lhe dá mais um sentido para sustentar sua sanidade. Mas seu sorriso não dura muito. Um outro urro faz com que seu exército inteiro pare e retorne a posição inicial.

Mesmo estupefato, Ahmed tenta enviar novas ordens, mas isso demonstra-se inútil.

– Que diabos está acontecendo? – pragueja o paquistanês em urdu.

– O que você quer com isso? – uma voz áspera, na mesma língua, vindo de sua retaguarda, o faz ter sensações que ele acreditou que não serem mais possíveis. Um arrepio sobe sua espinha e um grande incômodo aflige seu coração.

Ele olha para trás e vê uma figura esquálida, alta, em estado de putrefação avançado.

– Quais seus objetivo com essa empreitada? – a criatura pergunta novamente em urdu.

– Quem é você? – Ahmed desvia da pergunta de seu interlocutor com outra questão.

– Qual dos meus nomes você quer saber? – responde a criatura, esboçando algo próximo a um sorriso.

– O seu verdadeiro nome. – responde incisivamente o paquistanês.

A criatura ri, fazendo-o sentir raiva, mas por alguma razão que Ahmed ainda não consegue explicar, ele não sente vontade de ferir seus semelhantes. A raiva apenas aumenta sua aflição e a vontade de tomar a vida de alguém; a única coisa que realmente alivia o sofrimento.

– Por que ri? – indigna-se Ahmed.

– Porque você é um tolo! Uma criança sem discernimento! – responde rispidamente a criatura – De que adianta ter mantido sua sanidade até agora, se você pensa como um animal?

O ódio começa a borbulhar em Ahmed. A dor e a angústia aumentam. Sua mente entra em uma violenta correnteza de sensações, imagens e pensamentos, que o torturam. Ahmed sente que está prestes a perder completamente seu autocontrole.

– AARRRGHHH! EU PRECISO DE VIDA! – grita o morto-vivo desesperado.

– Todos precisamos. Nós, eles, e qualquer outro ser. – retruca a criatura encarando Ahmed com seus olhos aparentemente cegos, esbranquiçados, mas que dão a impressão de olharem nas profundezas do espírito do ex-islâmico. – Você consegue perceber a fragilidade daquilo que você se esforça para manter?

As palavras da criatura o atingem como um soco. Ahmed percebe o quão delicado é esse “controle” que ele luta tanto para manter, ao mesmo tempo em que uma súbita compreensão o toma de imediato.

– Até quando lutar contra um inimigo externo lhe trás essa sensação de objetivo que te ajuda a manter sua sanidade? – pergunta a criatura.

– Até que não haja mais com quem lutar. – responde Ahmed, compreendendo o que a criatura quer lhe dizer. – Mas depois eu não sei como será. Terei novamente que lutar sozinho contra mim mesmo.

– VOCÊ É UM TOLO! – grita a criatura, surpreendendo o paquistanês. – Lutar contra você mesmo? Há duas mentes ai dentro?

Ahmed sente-se pressionado e não perde muito tempo refletindo:

– Uma boa e uma má. – responde imediatamente.

– Ignóbil! – a criatura atinge-lhe um soco que o faz cair ao chão por causa do impacto. Ele nunca havia sentido um golpe tão forte, mas o que mais lhe surpreende, é que ele não entende como a criatura é capaz de ferir um igual. É um impulso instintivo deles, não se digladiarem. – Terei que te destruir, pelo jeito. Você é estúpido demais para ser um dos que mantém suas capacidades mentais quase intactas. Você, com o poder que tem, irá trazer apenas mais sofrimento para todos nós, e para eles. – A criatura aponta com a cabaça a cidadela que Ahmed pretendia atacar.

– Mas… mas como? – pergunta o morto-vivo extremamente confuso. – Como você será capaz de me destruir?

A criatura ri novamente.

– Qual a diferença entre te destruir e matar qualquer ser vivo? – a criatura o encara – Mas por certo, você me pergunta isso, apenas para saber como adquirir mais poder e dar um sentido ainda mais estúpido para você tentar manter sua medíocre inteligência.

Ahmed sente uma grande vergonha se misturando com seu ódio.

– Não, eu…

– Cale a boca! – a criatura o interrompe – Não tente se enganar, criança. Você acredita ser eterno. Que eternamente terá que “lutar contra você mesmo”, nesse estado de esquizofrenia no qual você viveu até hoje. – um sorriso se esboça novamente em sua boca – Nós não somos eternos, o tempo nos degenera e o sofrimento torna-se cada vez mais insuportável. Fingir que isso não acontece de nada adianta e tampouco se agarrar a esses sentidos vãos que colocamos em nossas vidas, irão nos livrar de nossa angústia.

Em sua mente, Ahmed inicia uma discussão, tentando manter aquele sentido de “vida” que o fez se sentir mais forte nesses últimos tempos, que a cada palavra de seu interlocutor, desmorona e se transforma em pó.

– O que devo fazer, então? – pergunta Ahmed quase em desespero.

– Não sou seu pai, tampouco seu Deus. – responde a criatura – Tem apenas uma coisa que posso afirmar que você NÃO deve fazer: destruir essa cidadela.

– Mas por que não? – pergunta o desmorto.

– Simplesmente, porque eles são os únicos vivos dessa região. Nós apenas encontraremos outros em uma semana de viagem. – a criatura responde e vira-se para partir.

– É só para isso? Você vem até mim, faz tudo que fez, só para manter sua fonte de subsistência? – pergunta Ahmed indignado.

Ele escuta uma risada novamente.

– Nós precisamos de vida, fiel. – o óbvio da resposta deixa Ahmed ainda mais frustrado – Você quer tomar a vida de cadáveres? Por que não toma sua própria vida?

Ahmed nada responde, estupefato.

– Esses ghul, nossos semelhantes, só estão mortos, porque se deixaram prender completamente pela repetição do sofrimento comum a nós. O que te faz acreditar que tudo isso que você faz consigo mesmo, não te prende ainda mais ao seu sofrimento?

Uma forte angústia toma conta de Ahmed.

– Quem é você? – pergunta o paquistanês, em desespero – Me ajude.

– Meu primeiro nome foi Ravana, mas isso não tem importância e de nada o ajudará. Encare essa impotência e angústia que você está sentindo. Só assim você a compreenderá. Se não fizer isso, sua “sanidade” não durará nem mais uma década.

Ahmed curva-se em respeito.

– Agora deixe essas pessoas em paz.

Ravana caminha, sem mais olhar para trás, deixando Ahmed sem outra alternativa, a não ser encarar seu sofrimento, sentindo sua fome devorá-lo e o desejo de matar aumentar. Ele olha para a cidadela e a dúvida o divide ao meio.

Infecta

A dor é lacerante. Segurando seu antebraço esquerdo mutilado com a mordida do insanus immortuos, o agente Paiva tenta pensar em uma solução para seu novo problema – enquanto foge de vários immortuos que o persegue – antes que a necrose tome todo seu braço e antes que as bactérias o matem.

Em sua mochila ele carrega a cabeça do debile immortuos que ele estava caçando. Um presente a um amigo, que ele não entregará se não fizer algo, e rápido. Correndo por um matagal, Paiva se recorda da perseguição que ele e o grupo de Paulo sofreram, e também recorda da morte de Carla, “a mulher do mecânico”.

Sem pensar duas vezes, Paiva vai na direção de um mercado que vê a quase cem metros de onde se encontra. Suas balas acabaram, tudo que tem agora é um pedaço de ferro que conseguiu no caminho e sua faca, algo não muito eficiente contra algumas dezenas de insanus immortuos.

Chegando no mercado, ele procura uma forma de subir ao telhado e, por sorte, encontra uma escada de marinheiro. Paiva sobe rapidamente – o mais veloz que esse tipo de escada permite – enquanto escuta alguma das criaturas tentando subir a escada também.

Ao chegar no telhado, Paiva sorri por seu plano estar dando certo, enquanto aguarda a criatura. Ele sabe que sua situação atual se difere em muito daquela na qual estava há meia hora atrás, quando sua presa tentou encurralá-lo dentro da residência e ele demonstrou não ser apenas mais uma vítima.

No momento em que o debile immortuos retirou sua tropa para que Paiva saísse da casa e visse o seu poder, o policial entendeu que a criatura não o deixaria ser morto por seus subordinados. Aquilo era um desafio entre titãs, e todos aqueles lacaios, nada mais eram do que meros artifícios de seu adversário para cansá-lo.

Paiva subiu ao telhado e observou sua situação. Após uma rápida análise, ele traçou o seu plano e subiu no ponto mais alto da casa, sua caixa d’agua, para ter uma visão completa do terreno e determinar de onde vinham as ordens.  Ao avaliar a provável direção, ele correu pelos telhados saltando de um para outro, alternando casas de forma a criar obstáculos para seus algozes; observando as criaturas persegui-lo com dificuldade pelas partes baixas.

Ao chegar no último telhado, no fim do quarteirão, Paiva pulou da casa e correu para a rua. Porém, sua atitude contrariou até mesmo seu bom senso. Ao invés de fugir de seus perseguidores, foi de encontro a eles. Derrubou pelo menos sete com tiros certeiros na cabeça, mas isso não foi o suficiente, os insanus immortuos se aproximaram e tentaram agarrá-lo, entretanto, ele foi muito bem treinado para enfrentar tais criaturas. Sacando sua faca com a outra mão, ele conseguiu derrubar mais três de seus inimigos, dois com tiro e um com uma facada precisa no centro da cabeça.

Após o corpo do terceiro cair estatelado ao chão, Paiva foi agarrado e tentando se desvencilhar, acabou sendo mordido no antebraço ao contrapô-lo à mordida que visava seu ombro, próximo ao pescoço. Mesmo pensando já estar morto, ele continuou lutando, e acabou sendo salvo pelo urro de seu real adversário.

Por causa da ordem do debile immortuos, o insanus o soltou e, enquanto todos se afastavam, ele fez um torniquete em seu antebraço com um pedaço de sua camisa. Após isso, agachou-se e pegou sua faca que ainda estava cravada no immortuos inanimado no chão, com sua mão tremendo devido a dor que sentia.

– Voooccê… seeeerrráa… grande…. aaajuuudaaa… nóos… – disse o debile immortuos aparecendo na entrada do grande corredor que se abriu.

Paiva ignorou. Como se nada estivesse ocorrendo, ele pegou de seu coldre mais um pente de sua pistola e se preparou.

– Ajuda? – perguntou Evandro respondendo ao seu adversário, que se aproximava cautelosamente – Mmm. Me mostre que você é digno de minha ajuda.

O debile entendeu o desafio e começou a se aproximar mais rápido. Paiva guardou sua faca e atirou em um dos joelhos do immortuos, que caiu no chão por inércia.

– É só isso que você tem a oferecer? – provocou o agente, percebendo o ódio da criatura aumentar.

Para sua surpresa, o debile também sacou uma arma e disparou, mas para sua sorte, o immortuos não parecia ter tanto treino quanto ele.

Paiva saltou rolando no chão e começou a correr em direção do final do corredor, por onde tinha vindo. Antes de passar os últimos immortuos que formavam o paredão, ele virou-se e atirou em seu adversário.

Como calculado corretamente, a criatura estava se preparando para soltar um de seus urros, que provavelmente ordenaria a seus subordinados para que o parassem. Seu tiro atingiu exatamente na garganta do débile, destruindo-a sem decapitá-lo, emudecendo-o.

Sem comemorar o ocorrido, o agente atingiu quatro dos immortuos que estavam em seu caminho e correu. O debile immortuos, não mais conseguindo dar outra ordem para seus lacaios e sabendo que não poderia contar com eles até o efeito da ordem passar, começou a caminhar mancando rapidamente atrás de Paiva. Seu ódio era imenso, o que obscureceu sua paciência.

Paiva esperou seu perseguidor, escondido atrás de um muro de uma casa aberta. Aguardou-o com toda cautela de um atirador de elite. A criatura surgiu bufando, como se tivesse perdido sua pequena capacidade mental.

Sentindo o cheiro do agente, ele olhou em direção do muro onde Paiva se encontrava, mas antes de conseguir vê-lo, um tiro estourou parte de sua cabeça, derrubando-o.

O policial, com sua faca, arrancou a cabeça de seu adversário – o que não foi tão difícil graças ao estrago que seu tiro havia feito – e a guardou, começando a correr logo em seguida. Ele sabia que os outros immortuos começariam a perseguí-lo a qualquer momento, o que não foi diferente.

Ele escuta os urros no estacionamento do mercado, enquanto espera a cabeça do insanus immortuos que está subindo a escada aparecer. Ele prepara o ferro e assim que a criatura aparece, crava-lhe sua “arma” na cabeça dele.

Paiva sente a dor no antebraço novamente quase lhe tirar a consciência. Ele retira a faca de seu coldre e corta um pedaço da bochecha do immortuos que está dependurado na entrada da escada.

Ele sabe o que fazer, mesmo não tendo certeza de que irá funcionar. “Se existem os sapiens immortuos, porque não seria possível existir infectas que conseguem manter sua mente intacta?”, se pergunta o Agente Paiva, se convencendo para fazer aquilo que deve fazer, “Além do mais, se eu não fizer isso, serei um deles logo logo”.

Sem mais argumentar, ele morde o pedaço de carniça crua e engole com grande esforço, vomitando em seguida. Ele se ajoelha e continua vomitando mais e mais, até seus vômitos serem apenas sangue.

Exausto, ele cai no chão e sente a tensão em seus músculos. A transformação é extremamente dolorida. Ele sente como se seus músculos e pele estivessem rasgando, e um grande calor começa a queimá-lo por dentro. Uma grande quantidade de adrenalina atinge seu cérebro e seus sentidos ficam extremamente excitados. Quando Paiva abre os olhos, vendo o mundo em matizes de vermelho, ele percebe que sua mente mudou profundamente.

Olhando para do telhado para os immortuos na vastidão do estacionamento, Paiva sorri. Ele quer mais, e sabe como conseguir.